O estranho duplo em ‘Cisne Negro’

PET Psicologia UFES
6 min readApr 14, 2023

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Mateus Soares de Sousa

O presente texto vai explorar as contribuições de Freud (1919) em seu texto O “Estranho” para o campo da estética, indo para além do tema sobre a beleza, adentrando o campo das qualidades do sentir. Ademais, a obra cinematográfica “Cisne Negro”, de Darren Aronofsky (2010), conta a história de uma linda e jovem bailarina, Nina, interpretada por Natalie Portman, que, ao ser escalada para interpretar a Rainha dos Cisnes, passa por uma série de eventos psíquicos em torno dessa nova responsabilidade. O papel consiste numa dupla performance, alterando entre os graciosos gestos do cisne branco e a sensualidade e desenvoltura do cisne negro.

O “estranho”, descrito por Freud (1919), se relaciona com aquilo que é assustador e acaba por provocar medo e horror; é também aquele “estranho” que é conhecido e familiar. Não é possível trabalhar o tema do “estranho” sem antes levantar a discussão em torno da tradução da palavra, a fim de captar a essência do termo e identificar sua etimologia. A palavra em alemão utilizada para nomear esta sensação de estranheza é unheimlich e significa o oposto de heimlich; para compreender seu significado, acaba por ser mais fácil explicar heimlich a fim de elucidar sua ambivalência que cunha o unheimlich. Deste modo, heimlich significa aquilo que é familiar, doméstico, íntimo, algo que não é estranho; porém, seu significado está simultaneamente inserido em dois conjuntos de ideias, tornando-a ambígua. Nesse sentido, heimlich também traz o significado de algo que está oculto e fora de vista, ao mesmo tempo que remete a algo familiar e agradável, ainda que enquanto algo afastado do conhecimento, algo inconsciente. Daí, temos que heimlich se conserva na ambivalência de seu significado até que chega ao seu oposto, unheimlich: este significando o contrário do primeiro, sua existência se encontra na ambiguidade de seu oposto, como uma nova categoria de algo que é heimlich.

A história contada em “Cisne Negro” trabalha constantemente a ideia do duplo nas relações e experiências da personagem. Nina é filha de uma bailarina que viu sua carreira chegar ao fracasso após sua gravidez, dessa forma, coloca expectativas de que Nina seja a bailarina perfeita, seja a bailarina que ela não conseguiu ser. Ao participar da audição para o papel de Rainha dos Cisnes no espetáculo, Nina conseguiu impressionar os professores de sua academia ao interpretar o Cisne Branco. Sua habilidade, destreza e disciplina possibilitaram uma execução perfeita deste papel. No entanto, ao performar o Cisne Negro, Nina encontra dificuldade em corporificar a sensualidade e astúcia do Cisne Negro. Por sua vez, Lily, uma das bailarinas da academia, conseguia exprimir esta sensualidade com extremo louvor. A partir daí, é cobrado de Nina uma aprimoração em sua performance, de forma que ela ‘se liberte’ e possa encarnar o Cisne Negro caso queira manter seu posto enquanto a Rainha dos Cisnes.

Dessarte, Freud (1919) aponta o fenômeno do duplo como mais uma dessas manifestações do “estranho”. O duplo estaria naqueles personagens que vão ser considerados idênticos por conta de sua semelhança. Otto Rank vai na mesma direção ao apontar o duplo que aparece nos reflexos do espelho e nas sombras. De maneira geral, o duplo por si só já possui uma dicotomia ambígua. Em “Cisne Negro”, Nina passa por uma pressão psicológica muito grande ao decorrer da história, uma vez que lida com os cansativos ensaios, a pressão de um papel muito importante e uma mãe que lhe impunha limites e regras a todo momento. Em vista disso, Nina começa a apresentar alucinações e delírios e o duplo começa a aparecer provocando uma sensação ruim, estranha e sombria. No início, o duplo era visto nos vultos, por exemplo ao passar por estranhos na estação de metrô, mas logo toma mais forma através do reflexo no espelho: Nina se depara com uma outra Nina que se comporta de maneira diferente a sua. Por vezes, o reflexo emite a imagem de Lily, sua rival para o papel no espetáculo, que é aquela que possui todos os atributos para ser o Cisne Negro perfeito.

O longa opera de forma que confunde o telespectador do que é real e do que é fantasia para Nina, tampouco podemos afirmar com certeza o que ali acontecia. O que cabe é levantar hipóteses e tomar algumas direções para começar a dar um sentido às coisas que Nina experienciava. Retomando a Freud (1919), ele ainda aponta a existência do duplo quando o sujeito se identifica com o outro de uma forma tão intensa que acaba por se confundir com este outro. Assim, o sujeito “fica em dúvida sobre quem é o seu eu (self), ou substitui o seu próprio eu (self) por um estranho” (Freud, 1919, pp. 252). Durante o longa, Nina se depara com decisões a fazer e medos a enfrentar; estas situações sempre chegam de forma dicotomizada e ambígua, brincando com a proposta dos “dois lados” dos cisnes. Nesse sentido, seu problema se encontra exatamente nas suas qualidades, era uma moça muito disciplinada e contida, mas que precisava romper e explorar o seu outro lado, o lado do Cisne Negro, o lado da sexualidade.

Por conseguinte, Nina encontra seu duplo também em Lily, uma vez que ‘se libertar’, como seu professor a instruía, era exatamente passar a ser mais como Lily era. O duplo também é capaz de receber novos significados após o desenvolvimento do ego, não se limita apenas ao narcisismo primário; nesse sentido, o duplo ainda “consegue resistir ao resto do ego, que tem a função de observar e de criticar o eu (self) e de exercer uma censura dentro da mente, e da qual tomamos conhecimento como nossa consciência” (Freud, 1919, pp. 253).

Chegando ao final do longa, durante a apresentação de ballet, Nina cai na primeira parte da performance, momento que fica muito fragilizada após receber uma reação negativa do professor. Ela volta a seu camarim para se preparar para incorporar o Cisne Negro e se depara com Lily, completamente pronta para entrar no palco e roubar seu papel. Ao entrar numa discussão pedindo para que Lily saia de seu camarim, Lily se transforma em seu duplo, aquela Outra Nina, uma versão mais agressiva de si mesma e embarca numa luta. Aos gritos de que “seria sua vez”, Nina quebra um espelho e mata o seu duplo com um pedaço do espelho.

O filme também se aproveita da fantasia ao dar características morfológicas de cisne a Nina durante o momento em que mata seu duplo, como se ela finalmente tivesse se libertado para ser o Cisne Negro. Após isso, vai até o palco e consegue realizar uma belíssima performance do Cisne Negro e agrada a todos, mais uma vez onde essa característica morfológica é mostrada: ela se vê como um belo cisne com asas e o ato é finalizado com sua sombra formando asas. Mais tarde, ao voltar ao seu camarim, vemos que toda aquela cena de luta não passava de uma alucinação e ela não havia matado um outro, mas teria se ferido da forma que achara que havia matado seu duplo.

A fim de compreender melhor a natureza do “estranho”, Freud (1919) propõe que, de acordo com a teoria psicanalítica, um afeto que pertence a um impulso emocional, se reprimido, acaba por se transformar em angústia. Assim, entre todas as representações do “estranho” pode se entender que o elemento que causa a estranheza é algo reprimido que acaba retornando. Esta perspectiva permite ainda entender o uso da linguagem no unheimlich e heimlich, uma vez que o “estranho” não seria algo novo, mas vai remeter a algo familiar que já está presente na mente do sujeito, mas que foi reprimido:

“uma experiência estranha ocorre quando os complexos infantis que haviam sido reprimidos revivem uma vez mais por meio de alguma impressão, ou quando as crenças primitivas que foram superadas parecem outra vez confirmar-se” (Freud, 1919, pp. 266).

Portanto, o tema do “estranho” é passível de ser abordado nos trabalhos que envolvem ficção, uma vez que o processo de criação de um filme, por exemplo, permite criar situações que vão ser “estranhas” de forma muito mais simples, como observado com o fenômeno do duplo em “Cisne Negro”. Freud (1919) também aponta o paradoxo que se cria visto que, algo “estranho” na ficção, talvez não tenha o mesmo efeito na realidade e vice-versa.

Referências

CISNE Negro. (Black Swan). Direção: Darren Aronofsky. EUA., 2010. (108min).

FREUD, Sigmund. O estranho (1919). In: ____. História de uma neurose infantil. Rio de Janeiro: Imago, 1989. p. 233–270.

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