Moonlight: uma análise sob a luz de diferentes epistemologias

PET Psicologia UFES
9 min readOct 26, 2023

“Hello stranger

(Ooh) it seems so good to see you back again

How long has it been?

(Ooh, it seems like a mighty long time)

(Shoo-bop, shoo-bop, my baby)

(Ooh) it seems like a mighty long time

Oh, I’m, I’m, I’m, I’m, I’m so glad

(Ooh) you stopped by to say hello to me

Remember that’s the way it used to be

Ooh, it seems like a mi…”

(Barbara Lewis)

O trecho da música — com o recorte da maneira que está — de Barbara Lewis é a trilha sonora de um comovente reencontro entre Chiron e Kevin, personagens do filme dirigido por Barry Jenkins “Moonlight: sob a luz do luar” (2016). É em torno, principalmente, da relação deles que será possível conversar com o texto “Família, capitalismo, ânus” de Guy Hocquenghem (1972/2020). Entretanto, a fim de compreender a relação entre os personagens, bem como a relação do filme com o texto, é interessante se debruçar a princípio sobre o longa-metragem.

Ganhador do Oscar de 2017, a obra cinematográfica conta a história de Chiron em três atos: i. Little; ii. Chiron; iii. Black. Correspondem, respectivamente, à sua infância, adolescência e adultez. O personagem, desde muito novo, sofre de homofobia por parte dos colegas da escola, é perseguido pelas ruas, espancado e xingado de “faggot” — que em português pode ser traduzido para “bicha” — antes mesmo de saber o que esse termo significa, ou até mesmo de saber o que é a homossexualidade. É como se todos ao seu redor soubessem que ele é gay antes mesmo dele tomar conhecimento disso, ou se entender como tal. Little mora com sua mãe que, a essa altura do filme, (ainda) trabalha e usa drogas com alguém que parece ser seu namorado. Diante disso, o menino fica exposto a uma situação de vulnerabilidade e é acolhido por Juan, traficante da cidade, e sua esposa Teresa. Nesse primeiro ato do filme Kevin e — até então — Little tem uma pequena interação, que de cara demonstra uma sensibilidade de Kevin para com o amigo.

No segundo ato nosso personagem principal torna-se Chiron, e não mais Little. A essa altura Juan, alguém que assume uma figura paterna para o menino, já não está mais em cena. Ele morreu por algum motivo que não é citado no filme, e fica a cargo da imaginação do espectador pensar no que aconteceu. Chiron agora é um adolescente, que continua sendo perseguido na escola pelos mesmos motivos de sua infância. Sua mãe já não trabalha mais e o filme sugere que ela se prostitui para sustentar seus vícios. Sendo assim, o menino continua recorrendo a Teresa para ter um lugar tranquilo para descansar a cabeça. Nesse momento do filme diversos elementos levam a pensar em um ponto debatido por Hocquenghem (1972/2020) a respeito do falo significante e o ânus sublimado.

Segundo o autor, no mundo da sexualidade edipianizada existe apenas um órgão: o órgão sexual, sendo ele o falo. É em relação a esse único órgão que se distribui a ausência e a presença. Nos homens a presença — e o consequente medo de perdê-lo — e nas mulheres a ausência — e o consequente desejo de tê-lo. Hocquenghem (1972/2020), a partir tanto de Freud quanto de Deleuze e Guattari, afirma que o falo é social e, em contraponto, que o ânus — principal objeto de satisfação homossexual masculina — é essencialmente privado e que não há lugar social para o ânus que não a sublimação. O autor articula com as fases anal e fálica retiradas da teoria psicanalítica.

Em um primeiro momento na constituição subjetiva freudiana há uma excitação em torno do anal. É esperado e celebrado pelos cuidadores da criança um sucesso das funções anais. Entretanto, na organização fálica da constituição do sujeito o que era excitação por uma função social desejante do ânus é sublimado e assume um lugar de privatividade, pois a partir de agora a excitação organiza-se em torno do falo (ROSI, 2019). Segundo Hocquenghem (1972/2020) as funções do ânus a partir daí resumem-se a funções excrementícias, isto é, privadas. É possível aqui perceber na formulação do autor um trocadilho entre privado, enquanto noção social, e privada, enquanto objeto usado para cagar. O ânus é, portanto, algo do qual não se fala.

Pensando no que foi exposto, em seu texto Hocquenghem (1972/2020) refere-se à constituição da pessoa privada, individual, que é da ordem do ânus. Estou falando de Little/Chiron. Um menino que durante os primeiros 9 minutos do filme não fala absolutamente nada. É um menino privado, sublimado, reprimido. Existem inúmeros motivos pelos quais Little/Chiron é um menino extremamente quieto, entretanto, é interessante para a discussão e articulação com o texto da disciplina destacar sua sexualidade. Como dito anteriormente é perseguido e chamado de “bicha” antes mesmo de saber o que essa palavra significa. Todos ao seu redor sabem que ele é gay e nessa virada entre o primeiro e segundo ato ele começa a descobrir esse aspecto a seu respeito. Ele é a bicha sublimada, a bicha anal.

Voltando à narrativa do filme, durante o segundo ato há momentos marcantes na relação entre Kevin e Chiron. Em uma interação na escola o primeiro confidencia ao segundo que foi suspenso por transar com uma menina na escada, momento no qual Chiron demonstra desconforto em ouvir a história, dando a entender que ele tem uma “queda” pelo amigo. Em um segundo momento quando se encontram acidentalmente na praia eles tem sua primeira interação sexual. Kevin masturba Chiron diante do mar, diante da lua, e ali eles trocam um momento de muita intimidade e importância para os dois. Nessas interações Kevin demonstra-se como um contraste a Chiron, enquanto o nosso personagem principal é tímido, calado e passivo, nosso coadjuvante é extrovertido, falante e ativo.

Diante disso e em oposição à constituição da pessoa privada de Hocquenghem (1972/2020), observamos a constituição da pessoa pública, que é da ordem do falo. Aqui, me refiro a Kevin. É o social, o público, o aparentemente hetero. Entretanto, como pontuado por Hocquenghem, apesar de todos os homens terem um falo que lhes garante um papel social, eles possuem também um ânus que é só seu. Tal afirmação refere-se novamente a Kevin, que apesar de ser um menino que se relaciona com meninas, relaciona-se também com outros meninos. Sua personalidade pública, articulada com essa dimensão fálica pontuada pelo autor, é a de um menino extrovertido e heterossexual. Sua personalidade que está privada, assim como o ânus que é bem seu, é esse investimento libidinal homossexual.

Após a troca de carícias na praia, o filme nos leva a tensão extrema. Kevin, essa pessoa pública, fálica e viril diante da sociedade é convocado por Terrel, colega da escola, a bater no Chiron. E cumprindo com sua convocação social ele assim o faz. O grupo que o convoca a tal atitude se aproveita do momento em que Chiron está caído no chão e o espanca. Há uma virada na narrativa a partir daí. O menino tímido e passivo revolta-se e no dia seguinte ao seu espancamento agride seriamente Terrel e é preso. Entramos então no terceiro e último ato do filme: Black. Agora adulto, nosso protagonista abandona Little, abandona Chiron e transforma-se em Black. Na prisão entrou em contato com um chefe do tráfico da cidade de Atlanta, passou a trabalhar para ele quando foi solto e cresceu no ramo. Torna-se então traficante, como um dia foi Juan.

Nesse momento é interessante nos debruçarmos sobre outro aspecto do texto de Hocquenghem (1972/2020): a sociedade de concorrência e o reino do falo. O autor articula que nossa sociedade é uma sociedade de concorrência, que ocorre entre os portadores de falo, os machos. Aqui o ânus está fora do jogo social. Enquanto Little e enquanto Chiron nosso protagonista coloca-se como essa pessoa privada, anal e retira-se desse jogo social de competição. Quando ele é traído por Kevin ao ser espancado e ridicularizado pelas mãos do próprio amante, ele assume uma posição fálica e entra nessa concorrência. Como pontuado pelo autor só se é um possuidor do falo através do reconhecimento dos outros, sendo assim Chiron toma a atitude — sai da passividade e torna-se ativo — de machucar seriamente Terel demonstrando a todos ao seu redor que ele é sim um possuidor do falo. Chiron/Black torna-se alguém a ser respeitado pelos outros machos através dessa atitude castradora em relação a Terrel. E faz isso diante de Kevin, que é a última pessoa que ele vê antes de entrar na viatura da polícia. Sua trajetória de vida a partir de então reforça essa escolha de assumir o falo e entrar no jogo de concorrência. Até que ele recebe uma ligação.

Em uma noite, anos depois da prisão de Chiron e de nosso personagem assumir Black — que inclusive era o apelido que Kevin deu para ele na adolescência — o protagonista recebe uma ligação. Do outro lado da linha está Kevin. Ele agora é um cozinheiro que trabalha em uma lanchonete típica estadunidense que possui uma jukebox na qual os clientes podem escolher alguma música para tocar. Ele conta toda essa história para Chiron/Black e diz que naquela noite um senhor esteve no restaurante e tocou “a música”. A música da qual Kevin se refere é “Hello Stranger” de Barbara Lewis e o filme dá a entender que é uma música que remete a relação dos dois. Kevin convida Chiron/Black para ir ao restaurante e eles desligam o telefone. O protagonista assim o faz. Dirige de Atlanta até Miami para visitar o amigo/amante.

Kevin ao se deparar com Black se assusta. O confronta porque ele não imagina que o menino que ele conheceu poderia se tornar aquele homem. Diante de Kevin, Black volta a ser Chiron. Fica claro para o espectador que Chiron constrói a armadura de Black para entrar nessa lógica da concorrência com outros machos para se proteger. Para não ser mais humilhado, espancado, chamado de “bicha”, desrespeitado. Ele não pode diante de uma sociedade racista e homofóbica ser uma bicha preta, então ele constroi Black. Mas, diante de Kevin ele pode. Ele admite que nenhum homem além de Kevin o tocou. Ali, próximo ao mar, próximo à lua, eles vivem um momento de troca e vulnerabilidade especial para os dois.

Moonlight (2016) é um filme sutil e sensível. Fala de racismo e homofobia de uma forma delicada, emocionante e ao mesmo tempo revoltante. Sendo assim, não é possível finalizar este ensaio sem fazer um mínimo recorte racial, porém como os textos da disciplina não me permitem fazê-lo busquei uma bibliografia alternativa. Em decorrência do processo de escravização e hiperssexualização do corpo preto o que se espera do homem negro é uma hiper-virilidade, hiper-sexualização e agressividade. Os meninos heterossexuais que aparecem no filme correspondem a essa expectativa social mas Little/Chiron não. Não é permitido a ele ser nada além dos estereótipos racialmente construídos e por isso sofre com tamanha perseguição e humilhação. Por isso ele constrói Black, que corresponde perfeitamente a esses estereótipos (SANTOS & SANTOS, 2022).

Por fim, é importante destacar que por todo ensaio estou me referindo a homossexualidade masculina. Não é possível compreender a homossexualidade feminina a partir do que foi exposto, para isso seria necessário o uso de outros textos e até mesmo outro filme. Esse é mais um ponto no qual Moonlight (2016) e Hocquenghem (1972/2020) se encontram: não há espaço para pensar em lesbianidade a partir do que foi exposto. Apesar de se tratar de um excelente filme, Moonlight incorre em estereótipos sexistas e misóginos, as únicas mulheres que participam do filme estão ali assumindo um papel maternal ou sexual. Ou os dois. Sendo um filme tão sensível à interseccionalidade entre raça e sexualidade seria interessante dar um espaço digno às personagens femininas ou até mesmo fazer qualquer menção a lesbianidade.

Hocquenghem (1972/2020) apesar de um teórico importantíssimo e com inúmeras contribuições a epistemologias homossexuais produz uma obra que, assim como o filme, incorre em estereótipos misóginos e sexistas, mesmo o autor sendo contemporâneo de feministas como Simone de Beauvoir. Apesar de analisar duas obras incríveis capazes de realizar imensas contribuições para meus estudos, é preciso pensar criticamente. É preciso pensar em raça, é preciso compreender que a comunidade é LGBTQIA+ e não se resume ao homossexual do gênero masculino e é preciso compreender a complexidade das mulheres diante dessas narrativas.

Referências:

HOCQUENGHEM, Guy. Família, capitalismo, ânus. In: O desejo homossexual. Rio de Janeiro: A Bolha Editora, 1972/2020.

MOOLIGHT: SOB A LUZ DO LUAR. Direção: Barry Jenkins. Produção de Upload Films et all. Estados Unidos: A24; Camera Films, 2016. HBO Max.

ROSI, Fernanda Stange. O lugar do sujeito nas intervenções precoces. 2019. Tese (Mestrado em Psicologia Institucional) — Curso de Psicologia — Universidade Federal do Espírito Santo, 2019.

SANTOS, Carolyne Laurie Benicia; SANTOS, Manoel Antônio. Campainhas, letreiros, luz de polícia: sobre ser negro, gay e filho de família inter-racial. Psicologia & Sociedade, n. 34, p.1–18, 2022.

--

--