A quem serve a desregulamentação da Psicologia? Reflexões éticas tecidas em uma escrita em primeira pessoa.

PET Psicologia UFES
9 min readJul 13, 2023

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Ana Rita P. Quinelato

A escrita deste texto é fruto de um incômodo que eu demorei a validar. Entre as idas e vindas da escrita deste trabalho, me perguntei inúmeras vezes se eu deveria dar tanta importância para um projeto de lei como a PL da desregulamentação. Não era muito difícil perceber o absurdo da PL 3081/22, a qual propõe acabar com as regulamentações de tantas profissões, inclusive a da Psicologia. Talvez, exatamente pela obviedade desse absurdo, me questiono se o que me trouxe aqui foi o pavor de uma aluna em início de graduação temendo por seu futuro profissional, se foi a mensagem do pai dela perguntando se o curso de Psicologia iria acabar, se foi a autocobrança por escrever algo sobre o assunto ou tudo isso ao mesmo tempo.

A sequência de fatores que me trouxe até aqui não é tão evidente, mas a pergunta disparadora de toda essa reflexão, certamente, é: Uma Psicologia sem regulamentação é uma Psicologia sem ética?

Desde que eu entrei na psi eu tenho ouvido falar sobre ética. Não uma ética apenas de manuais, mas uma ética que é feita com o corpo, com o olhar, com o dito e o não dito. E foi assim que eu soube que eu estava exatamente onde eu deveria estar. Eu sabia que eu estava em um lugar que não se contentava com os olhares desatentos e anestesiados. Eu sabia que eu estava entre aqueles dispostos a construir uma ética a partir da própria carne, implicada no corpo e no verbo, que não acreditava em uma política de ciência e saúde distante daquilo que todos nós somos. E é por isso que eu decido escrever em primeira pessoa, nesse exercício de pensar a ética em primeira pessoa. Talvez assim você também se sinta mobilizado a estar neste texto junto comigo. Onde mais eu poderia estar, afinal? Quase cometi o erro de falar sobre ética sem me meter no meio dessas palavras.

(…) E a criação permanente do mundo, mundo como obra de arte. É ético, pois evidencia um compromisso com a potência de efetuação da vida na diferenciação do ser. O confronto permanente com as forças do devir implica escolhas de modo de existência e, assim, do tipo de mundo em que se quer viver. E, portanto, político. (Rocha, 1993, p.236)

Ao escrever sobre ética, me deparo com o desafio de abrir caminho em meu próprio corpo a partir do que encontro no caminho de execução deste trabalho. Com ainda mais clareza, ao ler e pensar sobre ética, eu me vejo de cara com o compromisso que tenho com a minha própria escrita. Desde nova, me vejo escrevendo em diários como se essa fosse a coisa mais linda e importante que eu poderia fazer por mim. Ainda criança, sentar e escrever era o que me salvava, me alegrava e me permitia algum senso de poder sobre mim mesma. Quem eu sou, quem eu era e quem eu quero ser sempre passou por um exercício de sentar e escrever por horas a fio. Escrever, por vezes, é o meu exercício de ser. “Escrevo para registrar o que os outros apagam quando falo, para reescrever as histórias mal escritas sobre mim, sobre você. Para me tornar mais íntima comigo mesma e consigo. Para me descobrir, preservar-me, construir-me, alcançar autonomia” (Anzaldúa, 2000, p.232).

E o que isso tem a ver com a PL da desregulamentação? A ética, assim como a escrita é para mim, é um exercício de ser. Não é só o que lemos e ouvimos, mas é o que encarnamos e carregamos conosco nos diversos espaços que transitamos. Nesse sentido, entendo a ameaça ao que nos circunda como corpo profissional como uma ameaça ao nosso compromisso ético entre nós.

Ética como coexistência

Eu poderia discorrer sobre como o nosso país tem um berço, uma herança, de uma ciência higienista que ainda nos persegue até os dias atuais. Eu poderia dizer dos perigos de uma solução imediatista que descarta as universidades públicas, a graduação, como espaços de construção dessa ética viva. Mas, prefiro tecer aqui o exercício esperançoso de uma ética forjada no coletivo, quiçá, ubuntu, apoiado no pensamento de uma ética afroperspectivista de Noguera (2012, p.147), de “uma possibilidade de existir junto com outras pessoas de forma não egoísta, uma existência comunitária antirracista e policêntrica”.

Quando me coloco aqui, afirmo o meu direito de ver, dizer, pensar e produzir como qualquer outro. Afirmar o meu próprio lugar também abre espaço para que corpos como o meu se legitimem nesse exercício de pensar uma ética comum a todos nós. E, ainda segundo Noguera (2012, p.148), “se a realização de uma pessoa está sempre na interação com todas as outras pessoas. É indispensável levar em conta os ancestrais e os que estão por vir”.

Estou sempre em busca dessa Psicologia viva, capaz de se atualizar nas urgências do contemporâneo, mas que não se esquece de onde viemos, da natureza que somos e compomos. Krenak (2022) fala da força da vida que está nos rios e do horror que nós, urbanos, cometemos diariamente ao solapar rios como se isso não fosse nada. O mundo urbano capitalístico que estamos abastecendo com cada escolha cotidiana, em espaços profissionais e não profissionais, é este mundo contornado por morte, a não ser que nos demos conta disso e sejamos capazes de repensar nossas práticas quantas vezes forem necessárias. Se antes nós fomos legitimadores de práticas racistas e segregacionistas de tantas formas, para onde estamos indo agora? Estar atento a isso é o compromisso ético que carrego comigo.

Ética para além dos manuais

Falar sobre ética é sempre mais do que falar sobre o que está nos manuais. Mas os manuais são pontos que fazem parte dessa construção também. Ameaçar abolir regulamentos, ameaçar a educação presencial, ameaçar todos esses compromissos de tecer uma psicologia com tantos corpos distintos, o que tudo isso tem a nos dizer?

Ao escolher escrever sobre ética, sobre um projeto político que eu enxergo como ameaçador para a nossa classe profissional, fico presa entre dizer o óbvio e o que não é dito. Aqui estou nesse esforço de verbalizar um compromisso que é concreto, e ao mesmo tempo não é, que é fixo, mas que ao mesmo tempo é criado todos os dias quando me disponho a habitar espaços que são meus, mas que ao mesmo tempo ainda parecem não ser.

A urgência de pensar a ética das práticas psis nunca cessará. O que escolhemos fazer com os nossos manuais, para além das regulamentações, diz do nosso compromisso com tantas formas de vida que compomos e coexistimos. Com a proposta das redes de trabalho afetivo, de Teixeira (2004), alcançamos um olhar ainda mais lapidado sobre as formas de praticar esse compromisso: o de promover encontros que expandam a nossa potência por meio dos afetos, numa dinâmica de acolhimento e confiança, indo na contramão de nos tornamos uma mera ferramenta de produção hegemônica de subjetividades que impossibilite a pluralidade de formas de pensar, expressar, perceber, ser e estar no mundo.

O nosso compromisso é com a vida, rompendo com qualquer lógica de morte que ainda impera entre nós, socialmente, e produz ainda tantas segregações. Isso significa não esquecer do passado de uma ciência psicológica regida por ideias higienistas que ainda deixam rastros na atualidade. Isso também significa atuar de modo a expandir o exercício crítico das pessoas, para que possam existir enquanto protagonistas de suas vidas e também como questionadores do mundo em que estão inseridas.

E tudo isso é feito a partir de corpos, olhares, pele, suor e lágrimas. Não é só sobre instituições e regulamentos, mas sobre o exercício coletivo de se articular e aliançar a mundos diferentes dos nossos, em suas singularidades, capazes de fazer coexistir territórios com tradições e saberes distintos, mas que reconheçam e fortaleçam a nossa humanidade em comum. Krenak (2022) nos presenteia com esse olhar ao nos apresentar o conceito de alianças afetivas, nos convidando a fazer coexistir mundos diferentes para produzir uma unidade sustentável.

Ética como liberdade

Falar de ética também é falar de liberdade. Conforme Mattar e Rodrigues (2011), Foucault fala de um tempo, de uma ética antiga, em que essas duas faces já foram partes de um mesmo todo, como se liberdade não fosse possível de ser exercida sem uma ética que se ocupe de si mesmo, enquanto sujeito e coletividade. Partindo desse prisma, para pensarmos em caminhos de liberdade profissional nos quais estejamos seguros, inteiros e potentes, é necessário, previamente, dar-se conta de si. Se queremos nos tornar protagonistas e não reféns de um poder que nos limita, há uma sutileza capaz de reconfigurar essas forças. Essa sutileza está baseada nas escolhas metodológicas de pesquisa, quando rompemos com uma ideia de neutralidade científica, por exemplo. Essa sutileza está baseada na construção de um olhar e de uma escuta comprometida com o cuidado, capazes de moldar a relação com o outro e fortalecê-lo enquanto ser humano, também.

Escrever essa carta é um ensaio individual de liberdade com pretensões de se tornar coletivo. Porque eu não suporto mais a ideia de ler um texto e não conseguir imaginar ninguém ali, tecendo as palavras. Porque eu detestaria escrever um texto sem imaginar que você, do outro lado, de alguma forma está sentindo alguma coisa revirar por aí. Não posso admitir que você saia daqui sem sentir coisa alguma.

Eu acredito nos modos de escrita que rasgam o verbo, como rios furiosos transbordandos pelos bueiros entupidos dos problemas que fingimos não ser nossos. Eu acredito em uma Psicologia capaz de apontar as políticas de morte que adoecem tanta gente. Eu acredito em uma ciência viva, que não se limita a publicações em revistas renomadas, mas que produz novas vias de mundo.

O que estamos fazendo da liberdade que temos agora? O que estamos denunciando e o que estamos deixando de denunciar em nome de uma “estabilidade” que nunca existiu, mas que sempre nos tenta a abandonar o nosso maior compromisso: a vida?

Ética como reafirmação de um compromisso

Que as nossas práticas psis estejam sempre comprometidas a mexer nos espaços cotidianos e políticos em que nós chegarmos. Que esteja comprometida também a nos revirar a carne e o status quo que ainda é assassino de tantos povos, de tantas nascentes. E que nós estudantes, profissionais e cidadãos possamos reafirmar o nosso compromisso na construção de uma Psicologia que sirva a cada vez mais pessoas. Um projeto ético-político para a nossa profissão é uma feitura constante e coletiva.

Conceição Evaristo, citada por Krenak em seu livro “O futuro ancestral”, diz que temos mais facilidade em acreditar na totalidade do capitalismo do que na nossa capacidade de reverter as coisas. O presente texto nasce de uma luz dentro de mim que não me deixa parar de acreditar nas pessoas, na potência de todas elas — e na minha própria potência também. É essa a ética que eu carrego comigo.

Como conclusão, ainda resta o questionamento: Desregulamentar toda uma classe profissional é a forma mais eficiente para o quê e é útil para quem?

REFERÊNCIAS:

Anzaldúa, G. (2000). Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo. Estudos Feministas, v.8, (n. 1), p.229–236. https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/9880/9106

Krenak, A. (2022). Futuro Ancestral. Companhia das Letras.

Mattar, C., Heliana, R. (2011). O cuidado de si como prática da liberdade: contribuições para uma discussão sobre a ética em Michel Foucault. In K. J. Matos Lopes, E. Nolasco de Carvalho, K. S. Alves Lopes de Matos (Orgs.). ética e as reverberações do fazer (pp. 15–32). Edições UFC.

Mitraud, T. (2022). Projeto de Lei Nº 3081/22, Revoga e altera Leis, Decretos-Leis e um Decreto, a fim de desregulamentar profissões e atividades que não ofereçam risco à segurança, à saúde, à ordem pública, à incolumidade individual e patrimonial. Brasília: Câmara dos Deputados. https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2228161&filename=PL%203081/2022

Noguera, R. (2011–2012). UBUNTU COMO MODO DE EXISTIR: Elementos gerais para uma ética afroperspectivista. Revista da ABPN, v. 3 (n. 6), p. 147–150. https://filosofia-africana.weebly.com/uploads/1/3/2/1/13213792/renato_noguera_-_ubuntu_como_modo_de_existir.pdf

PUC Minas Gerais. (2022). Orientações para elaboração de citações e referências: conforme a American Psychological Association (APA) 7ª edição. https://portal.pucminas.br/biblioteca/documentos/APA-7-EDICAO-2022-NV.pdf

Rocha, M. (1993). DO PARADIGMA CIENTÍFICO AO PARADIGMA ÉTICO-ESTÉTICO E POLÍTICO: A ARTE COMO PERSPECTIVA NAS RELAÇÕES EDUCACIONAIS. In: Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP. Cadernos de Subjetividade (pp 235 -239).

Teixeira, R. (2004). As redes de trabalho afetivo e a contribuição da saúde para a emergência de uma outra concepção de público. https://www.academia.edu/12680923/As_redes_de_trabalho_afetivo_e_a_contribui%C3%A7%C3%A3o_da_sa%C3%BAde_para_a_emerg%C3%AAncia_de_uma_outra_concep%C3%A7%C3%A3o_de_p%C3%BAblico

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